Onde nascem as lendas
Apoio Prefeitura de Santo André
Por Jairo Costa(*)
Longe de ser uma unanimidade mesmo sendo um enorme sucesso, as lendas e mitos da vila de Paranapiacaba provocam um misto de sentimentos e opiniões diferentes entre moradores, frequentadores assíduos da vila, turistas e aventureiros de fim de semana.
Adorada por muitos mas desprezada pela grande maioria dos habitantes locais, principalmente dos mais antigos, as supostas manifestações fantásticas sobrenaturais com ocorrência no alto da serra são hoje indissociáveis à imagem que o mundo tem de Paranapiacaba, constituindo-se legitimamente como um verdadeiro patrimônio cultural imaterial da vila e porque não, de toda Santo André e ABC Paulista.
Da mesma forma que Itu (SP) tem em seu DNA folclórico a presença do Saci, Joanópolis (SP) a do Lobisomem, Peruíbe (SP) a dos Objetos Voadores Não Identificados, São Tomé das letras (MG) seus duendes e supostos portais que levariam até Machu Picchu, Ilha Bela (SP) seus piratas e tesouros, Colares (PA) as luzes vampiro e Varginha(MG) o seu famoso ET, Paranapiacaba tornou-se conhecida como a morada de assombrações das mais diversas como a de uma noiva fantasma, de uma bailarina solitária e a de um engenheiro chefe rigoroso e vigilante que remetem o incauto visitante a um passado idealizado, época de ouro da exploração do café, da construção da estrada de ferro SPR pelos ingleses (Santos-Jundiaí) e seus fantásticos trens puxados pelo brilhante sistema funicular, o maior do mundo em sua época.
Desde que passei a frequentar Paranapiacaba no final dos anos 1990 para fazer minhas primeiras trilhas pela serra do mar as histórias apavorantes sobre visagens e assombrações já circulavam pelas ruas geladas e envoltas na névoa da vila. De lá para cá, quase 30 anos depois, dezenas e mais dezenas de histórias e relatos fantásticos chegaram até mim, das formas mais diversas possíveis, seja como narrativas testemunhais de pessoas que vivenciaram alguma manifestação “fora do normal”, seja através de relatos reproduzidos de terceiros no tão conhecido boca-a-boca, ou, como antigamente se comentava pelas fábricas do ABC, pela rádio peão.
Sem entrar no mérito sobrenatural, sobre a realidade ou não da existência de espíritos e almas penadas condenadas a assombrar eternamente nossa amada vila, dediquei real esforço em tentar descobrir a origem das lendas e identificar seus criadores, encontrar vestígios que apontem o início de sua proliferação, saber desde quando elas são contadas e porquê.
Antes de mais nada, qual a diferença entre lenda e mito?
“As Lendas são narrativas transmitidas oralmente pelas pessoas com o objetivo de explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Para isso há uma mistura de fatos reais com imaginários. Misturam a história e a fantasia. As lendas vão sendo contadas ao longo do tempo e modificadas através da imaginação do povo. Ao se tornarem conhecidas, são registradas na linguagem escrita. Do latim legenda (aquilo que deve ser lido), as lendas inicialmente contavam histórias de santos, mas ao longo do tempo o conceito se transformou em histórias que falam sobre a tradição de um povo e que fazem parte de sua cultura.
Características de uma Lenda:
Se utiliza da fantasia ou ficção, misturando-as com a realidade dos fatos.
Faz parte da tradição oral, e vem sendo contada através dos tempos.
Usam fatos reais e históricos para dar suporte às histórias, mas junto com eles envolvem a imaginação para “aumentar um ponto” na realidade.
Fazem parte da realidade cultural de todos os povos.
Assim como os mitos, fornecem explicações aos fatos que não são explicáveis pela ciência ou pela lógica. Essas explicações, porém, são mais facilmente aceitas, pois apesar de serem fruto da imaginação não são necessariamente sobrenaturais ou fantásticas.
Sofrem alterações ao longo do tempo, por serem repassadas oralmente e receberem a impressão e interpretação daqueles que a propagam.
Os Mitos, por sua vez, são narrativas utilizadas pelos povos antigos para explicar fatos da realidade e fenômenos da natureza que não eram compreendidos por eles. Os mitos se utilizam de muita simbologia, personagens sobrenaturais, deuses e heróis. Todos estes componentes são misturados a fatos reais, características humanas e pessoas que realmente existiram. Um dos objetivos do mito é transmitir conhecimento e explicar fatos que a ciência ainda não havia explicado.
Características de um mito:
Tem caráter explicativo ou simbólico.
Relaciona-se com uma data ou com uma religião.
Procura explicar as origens do mundo e do homem por meio de personagens sobrenaturais como deuses ou semi-deuses.
Ao contrário da explicação filosófica, que se utiliza da argumentação lógica para explicar a realidade, o mito explica a realidade através de suas histórias sagradas, que não possuem nenhum tipo de embasamento para serem aceitas como verdades.
Alguns acontecimentos históricos podem se tornar mitos, desde que as pessoas de determinada cultura agreguem uma simbologia que tornem o fato relevante para as suas vidas.
Todas as culturas possuem seus mitos. Alguns assuntos, como a criação do mundo, são bases para vários mitos diferentes.
Mito não é o mesmo que fábula, conto de fadas ou lenda.(*)
*Ana Paula de Araujo – Infoescola.com (https://www.infoescola.com/redacao/mito-ou-lenda/)
Agora que compreendemos a diferença entre uma lenda de um mito podemos mergulhar mais profundamente na complexidade folclórica apresentada em Paranapiacaba, que muitas vezes apresenta histórias hibridas com narrativas que comportam tanto um pouco de lenda como um pouco de mito. Como exemplo clássico, a lenda do véu da noiva nasce de uma história real que vai se modificando, adquirindo elementos de lenda e que acaba incorporando um fenômeno climático, o fog, o nevoeiro que cobre a vila todos os dias, agregando características de mito. Outra lenda que tem origem em fatos reais é a do poço das moças, assim como a do homem capa.
A Paranapiacaba de ontem e de hoje: Onde nascem as lendas ou os “monstros”?
Como uma comunidade de certa forma homogênea que foi criada com um único objetivo que era construir a ferrovia e posteriormente ser o centro de operações da São Paulo Railway, Paranapiacaba, diferentemente de outras sociedades, desenvolveu sua própria identidade, seu modo particular de existir.
Sua religiosidade, crenças, ética, costumes, tradições, sua cultura própria criara a identidade do “serrano”, que nada tinha a ver com habitantes de outras regiões, nem de Santo André, nem de São Paulo, Jundiaí ou da baixada santista.
Antes da vila ferroviária entra em declínio existiram os dias de glória com a tecnologia ferroviária mais avançada da época, empregos excelentes e bem remunerados, moradia fornecida pela companhia, atendimento médico, primeiro campo de futebol do país nas medidas oficiais, segundo cinema do brasil, dentre outras benesses.
Mas assim como o lado positivo saltava aos olhos, o negativo também era marcante no cotidiano, o viver para o trabalho, o controle rígido dos ingleses, os horários, o frio inclemente, o nevoeiro incessante que as vezes impedia a chegada da luz do sol por meses, o trabalho extremamente perigoso e causador de incontáveis mortes estavam na espinha dorsal daqueles dias.
Partindo desse ponto de vista não é difícil imaginar um celeiro perfeito para o surgimento de inúmeras histórias, causos e lendas que envolvem o saudosismo de um tempo idealizado onde quase tudo era bom, todos eram jovens e felizes em uma comunidade utópica no alto da serra do mar, hoje desaparecida.
A herança inglesa do controle rígido das normas, costumes e dos horários, personificada no relógio de Paranapiacaba, a vigilância ostensiva, pan-óptica papel perfeitamente representado pelo castelinho, que era a casa e o posto de trabalho do engenheiro chefe, as festas, apresentações e comemorações ocorridas no prédio do Clube Lyra Serrano são resquícios de tempo de excelência que não volta mais, e estas construções ainda de pé, ecos de um passado distante, permaneceram através dos espectros, dos fantasmas, das metáforas transubstanciadas em lendas.
Com a decadência completa do aparato ferroviário nos anos 1970 e a degradação de todo o complexo funicular, sucateamento e abandono da vila nos anos 1990 uma nova vida para a vila se forjou quando a prefeitura de santo André decidiu adquirir todo o complexo histórico de Paranapiacaba, criando o desafio de se reinventar e se sustentar com base no turismo histórico, ecológico e de aventura no princípio dos anos 2000, que é quando as lendas também ganham fôlego e os ouvidos dos novos frequentadores, os aventureiros, entusiastas e turistas do século XXI .
*Jairo Costa é pesquisador, escritor, autor dos livros Paranapiacaba lendas e mitos; Fog; Constantino castellani, Der Golem, Amazônia Fantástica, entre outros. É editor da Estranhos Atratores e fundador da Revista Mortal.
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