Formada em Veneza em 1975, a brigada mobilizava seus integrantes para o combate internacional do fascismo
Por Fábio Ribeiro*
A importância da luta contra o fascismo é maior a cada dia. Em diversas partes do mundo crescem e se organizam movimentos de extrema direita que exaltam líderes farsescos, sedentos de inimigos para descarregar seu ódio e prontos a defender um mundo violento, preconceituoso e excludente. Ou seja, no ponto certo para tomarem um belo chute no traseiro.
Ao longo dos últimos 70 anos, diversos movimentos e grupos de esquerda impulsionaram a luta antifascista, confrontando os supremacistas e os fascistas por meio da ação direta ou da disputa no campo das ideias, da cultura e do afeto.
Neste texto resgataremos uma importante experiência antifascista realizada por renomados artistas plásticos que viviam na Europa nos anos 1970. Trata-se da Brigada Internacional de Pintores Antifascistas, formada em Veneza, em 1975, com o propósito de mobilizar o trabalho artístico e o prestígio de seus integrantes no combate internacional ao “recrudescimento do fascismo”, observado especialmente nas ditaduras militares latino-americanas da época.
A Brigada era formada por doze artistas de diversas nacionalidades, então radicados na Europa: José Balmes (Chile, 1927-2016 ), Vittorio Basaglia (Itália, 1936-2005), Davide Boriani (Itália, 1936-), [?] Eulisse Henri Cueco (França, 1929-2017), Jose Gamarra (Uruguai, 1936-), Julio Le Parc (Argentina, 1928), Alejandro Marcos (Argentina, 1937-) ,Gontran Guanaes Netto (Brasil, 1933-2017), Guillermo Nuñez (Chile, 1930-), [?] Perusini, Ernest Pignon-Ernest (França, 1942-) e [?] Van Meel.
Contando com certo apoio da prefeitura e da organização da Bienal de Veneza, o grupo se formou na cidade italiana, em 1975, e foi bastante ativo até o início dos anos 1980. Sua primeira atuação foi a realização de um grande painel (11 metros de comprimento por 2,40 de altura) no porto da cidade de Veneza, em apoio aos doqueiros que organizavam uma greve para boicotar a saída de navios que levariam armas para o governo ditatorial chileno.
A imagem abaixo é um fragmento desse primeiro painel produzido pelo coletivo:
Segundo Gontran Guanaes Netto, o representante brasileiro da Brigada, esse painel foi construído em diálogo com os doqueiros, que participaram do processo de concepção da pintura e forneceram toda a estrutura para o trabalho dos artistas. Reunidos com os portuários de Veneza, os artistas lançaram seu primeiro manifesto que expressava as ideias principais do grupo e a direção dos próximos trabalhos. Vejamos o texto:
Diante do recrudescimento do fascismo, de seus crimes e considerando as diversas ações realizadas por pintores em todo o mundo, além da nossa experiência, nos propomos a participar, através de nossa prática profissional e técnica, através de nossa imaginação, das lutas empreendidas por organizações democráticas e antifascistas, reforçando a mobilização em nosso meio sobre essa bandeira de luta.
A Brigada reunida em Veneza enfatiza a urgência das ações concretas nas lutas antifascistas, particularmente no Chile e na Espanha. Os pintores da Brigada apoiam concretamente, a partir de hoje, por meio de um trabalho específico, o boicote internacional dos doqueiros que se recusam a carregar os navios de Pinochet. Em acordo com a C.U.T.Ch.[1] e as organizações sindicais internacionais, eles acompanham as ações dos trabalhadores realizadas em diversos portos da Europa.
Os artistas da Brigada sublinham que a escolha de Veneza para começar esta ação é simbolicamente ligada à tradicional abertura cultural desta cidade, hoje reforçada por uma nova participação popular e democrática em sua administração.
Os artistas presentes em Veneza decidem, no dia 14/10/1975, juntar-se a ação de boicote das entregas ao general Pinochet feito pelos trabalhadores do porto de Veneza. decidem concretizar sua solidariedade realizando uma obra mural coletiva., após discussão com os trabalhadores.
BRIGADA INTERNACIONAL DE PINTORES ANTIFASCISTAS, 14/10/1975.
Ao longo de quase uma década, isto é, de 1970 a 1980, a Brigada Internacional de Pintores antifascistas produziu diversos afrescos, faixas e painéis, criou exposições, redigiu manifestos integrou e organizou movimentos e ações populares de rua. Conscientes do papel social que a pintura poderia exercer, esses artistas abandonaram suas posições resignadas de intelectuais e uniram-se aos trabalhadores na luta contra o autoritarismo.
Contudo, para realizar essa tarefa, os artistas da Brigada tiveram que buscar formas de se desvencilhar dos limites impostos pelo mercado da arte institucionalmente estabelecido (galerias, marchans, etc.), que transforma tudo em mercadoria e neutraliza o conteúdo crítico das obras, inviabilizando o diálogo da arte com o grande público e com os dilemas da sociedade.
Para desenvolver uma luta efetiva contra o fascismo, as ações da Brigada seguiram um movimento de enfrentamento ao establishment artístico, buscando caminhos inovadores de produção, circulação e reprodução de sua arte. Essas ações também fizeram parte de um grande movimento posto em marcha por muitos artistas da época, que debatiam e construíam condições para intervir na sociedade e na cultura, através de seu próprio trabalho.
Entre as alternativas que esses artistas criaram, destacamos a prática do trabalho coletivo, a vinculação com os movimentos sociais e a produção/circulação da obra na rua. Tais condições possibilitaram um rompimento com os atributos mercadológicos do trabalho artístico e abriram caminho para que a pintura servisse como instrumento de luta política e não um objeto artístico a ser comprado ou contemplado.
A fotografia abaixo, tirada em Paris no ano de 1976, é um primeiro exemplo da produção coletiva e de rua realizada pela Brigada Antifascista.
Através do trabalho em grupo, os artistas romperam com a “marca” individual de cada um, normalmente utilizada pelo mercado para a valorização da obra, além de produzirem em grandes proporções, geralmente realizadas em festas ou manifestações populares, mais difíceis de realizar individualmente.
Na pintura coletiva as características individuais de cada artista se fundiam em favor da mensagem única de denúncia/resistência contida na obra. Apesar de pertencerem a tendências estéticas distintas (abstratos, cinéticos, figurativos), era na ação coletiva que os artistas da Brigada construíram um único grito de apoio ao povo chileno que vivia em uma ditadura desde 1975.
Além da construção coletiva das obras, os membros da Brigada se valiam do aspecto contraditório do “papel” social do artista para impulsionar sua luta. Em alguns momentos utilizaram o prestígio da profissão para ampliar o discurso político, em outros criticavam a visão elitista da arte e do artista, integrando a população na construção das obras e retirando-as do espaço fechado do museu.
Na imagem abaixo vemos o cinético Julio Le Parc pintando em praça pública um painel dedicado à denúncia dos bárbaros métodos de tortura praticados pelo governo militar argentino, um dos mais violentos da América Latina. Ao pintar e expor essa tela ao público da comuna francesa Villeparisis, o artista levou às pessoas o espanto, já que não poderiam fugir ao choque da brutalidade representada. Independente de sua vontade o povoado de Villeparisis foi confrontado com a dura realidade vivida em alguns países latinos americanos.
No centro da tela, Le Parc menciona a seleção argentina de futebol, campeã do mundo em 1978. Assim, tanto o artista quanto a Brigada Antifascista denunciavam que o torneio foi utilizado para promover a distração nacional diante dos problemas políticos e econômicos e encobrir os graves crimes contra a humanidade.
As próximas quatro imagens retratam uma bandeirola produzida pela Brigada em apoio ao povo de El Salvador, em 1981. Na segunda fotografia vemos a pintura gigante que circula em meio a uma manifestação popular, realizada em Paris, em apoio à luta do povo salvadorenho contra o governo golpista instaurado em 1979, com ajuda do governo dos EUA. Os artistas carregavam a bandeira em meio aos manifestantes de diversos movimentos sociais.
O conflito político, que desatou em guerra civil em El Salvador (1980-1992), teve ampla repercussão internacional, pois o destino do país era essencial na política externa dos Estados Unidos para a América Central nos anos 1980. O governo de Ronald Reagan apoiou as forças conservadoras do país contra as guerrilhas salvadorenhas lideradas pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). Em contraponto, comitês de solidariedade a El Salvador, em diversas partes do mundo, apoiavam as guerrilhas da esquerda e a deposição do governo patrocinado pelo imperialismo estadunidense.
Os exemplos de El Salvador, do Chile e da Argentina deixam claro que o tema principal de trabalho da Brigada Internacional de Pintores Antifascistas era a América Latina. Apesar de o continente latino-americano não ser o monopólio de violência no mundo, na época, a maior parte das produções da Brigada denunciava as ditaduras implantadas no cone sul nos anos 1960/70 ou apoiava os movimentos de resistência a essas ditaduras.
Essa preponderância da América Latina no horizonte da luta antifascista se deu, especialmente, pela forte influência das redes de solidariedade e trabalho que envolvia boa parte de políticos e intelectuais latino-americanos que residia na Europa, muitos deles exilados.
Segundo Miguel Rojas Mix (2001), houve um exílio “massivo” de latino-americanos no último terço do século XX, que pode ser considerado como a maior onda de exílio ocorrida na história do continente. Em território europeu, esses exilados se uniram aos conterrâneos anteriormente lá estabelecidos e tantos outros intelectuais de todo o mundo, também solidários às bandeiras de luta dos latino-americanos., e participaram de um amplo movimento cultural, cuja principal vertente era a vinculação entre a arte e a política.
A Brigada Internacional de Pintores Antifascistas pertenceu a essas redes. Metade de seus membros era latino-americano, e três deles, o brasileiro Gontran Netto e os chilenos José Balmes e Guillermo Nuñez, eram exilados políticos.
A solidariedade internacional aos dramas latino-americanos também esteve presente no manifesto lançado pelos pintores franceses da Brigada Antifascista em 1976, em oposição à visita do então presidente brasileiro Ernesto Geisel ao presidente francês Valéry Giscard:
Os pintores franceses representantes da Brigada Internacional de Pintores Antifascistas têm conhecimento da visita de três dias do ditador fascista brasileiro GEISEL convidado oficial do presidente Giscard.
O ditador Geisel é o representante de um sistema de fascismo moderno que utiliza a tortura e os assassinatos de democratas para impor ao povo brasileiro a política de terror ditada pelas multinacionais e o imperialismo americano.
A brigada considera que a presença de GEISEL na Europa constitui uma verdadeira e intolerável provocação a todos os democratas solidários da justa luta do povo brasileiro.
Denunciando a cumplicidade do poder (girscadien) capitalista europeu, a brigada convida todos os artistas e organizações de artistas a nos reunir assinando este documento.
(BRIGADA INTERNACIONAL DE PINTORES ANTIFASCISTAS, fev. 1976).
Nos trabalhos apresentados a seguir, destacamos outro elemento central que permeou a luta política dos latino-americanos e esteve presente nos trabalho da Brigada Antifascista: o imperialismo estadunidense.
A imagem acima é um fragmento de um painel produzido pela Brigada Internacional de Pintores Antifascistas durante um festival de teatro latino-americano em Nancy (França), em 1977. A pintura representa diversos símbolos que associam claramente a ação do governo estadunidense na proliferação de regimes violentos e autocráticos.
Já a imagem abaixo é um recorte do painel realizado em apoio à revolução nicaraguense, em 1978. Nele, novamente a bandeira estadunidense representou a violência institucional contra o povo da Nicarágua que se mobilizou num vitorioso levante armado.
Com estes exemplos demonstramos algumas das principais ações realizadas por esse coletivo, cuja trajetória ainda é pouco conhecida no Brasil. A Brigada Internacional de Pintores Antifascistas atuou na contramão da mercantilização pós-moderna da arte e buscou um sentido social para o trabalho artístico, por isso, ainda hoje, ela reside em um espaço pouco visitado pelos historiadores da arte.
Diante dos crimes praticados pelo “fascismo moderno”, a Brigada Internacional de Pintores Antifascistas mobilizou sua arte como ferramenta política. Seus membros enfrentaram a estetização da política, comumente adotada pelo fascismo, com a politização da arte. Aprendamos com esses ensinamentos, ergamos nossos pincéis e vamos à luta!
(Fábio Ribeiro é professor, pintor e membro do Coletivo TOCAH)
[1] Central Única dos Trabalhadores do Chile.
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